Jota Mombaça
Trad.: Natalia Affonso
10 de Novembro: Judith Butler é assediada no aeroporto de Congonhas por um grupo de brasileiros conservadores, após uma semana de controvérsias por causa da sua participação no seminário “Os Fins da Democracia”, promovido pelo SESC Pompeia em São Paulo. Até antes da chegada de Butler no país, os conservadores já tinham começado a lutar contra a presença dela no país. Uma petição pública foi lançada e houve uma ampla campanha nas redes sociais contra a suposta contribuição da filósofa para a difusão da tão falada ideologia-de-gênero-que-está-arruinando-a-juventude-nacional como uma praga dentro das escolas e universidades.
De repente, a teoria queer deixa os corredores acadêmicos de onde surgiu para o centro de um debate acalorado travado na arena da já turbulenta esfera pública do país. As imagens de bruxas sendo queimadas pelas mãos de cristãos fundamentalistas, assim como os posters ofensivos acusando os textos de Butler de incitação à “pedofilia” e ao “anti-semitismo”, nos oferecem um registro visual da vocação surrealista das interpretações conservadoras quanto ao cenário atual do Brasil e do mundo. Sem nenhuma conexão com uma epistemologia realista, o cerne dessa narrativa é o pânico moral em relação à ameaça apresentada pelo crescimento de movimentos como o LGBTQIA e o transfeminismo Interseccional ao mundo que eles estão tentando preservar – mundo governado pelo binarismo de gênero, pela família heterosexual, e pela ficção do grande guerreiro nacional.
Junto com o episódio de Butler, o fechamento da “Queermuseu” (uma exposição comissionada pelo Santander Cultural, uma proeminente instituição de arte financiada pelo banco de mesmo nome), a perseguição pública do artista Wagner Schwartz por causa de sua performance La Béte (na qual seu corpo nu é instalado como uma plataforma interativa para o público), assim como a interdição legal da peça teatral de Renata de Carvalho, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (baseada no roteiro original de Jo Clifford, no qual Jesus é performado como e por uma mulher trans), se tornaram simultaneamente os alvos mais visíveis dos ativistas de direita — agrupados em torno de um novo movimento alimentado por ideais antigos, o MBL — e seus aparatos institucionais (o governo em si), assim como os bastiões mais visíveis da resistência de esquerda contra a censura.
Apesar da luta contra a onda de censura moralista ser importante, por demonstrar como esses episódios de perseguição pública de artistas e intelectuais críticos estão atrelados a dispositivos de silenciamento e exclusão muito mais complexos, também é importante considerar, durante esse processo, a maneira como a própria cartografia da dissidência que está em jogo foi desenhada de acordo com os limites discursivos impostos pelos gestos conservadores de censura: as pessoas são levadas a acreditar que a arte está em risco, quando o risco artístico nada mais é do que a continuidade do próprio risco de vida daqueles corpos representados pelos inquisidores da direita como perigosos para o projeto nacional. Além disso, o espetáculo da censura pode facilmente fazer alguém acreditar que esse risco nunca antes esteve presente na história da democracia brasileira, como se a luta irrefreável de sujeitos negros, queer, trans, e femininos para apenas viver com dignidade não fosse um indicador da onipresença da supremacia branca, do fundamentalismo cisgênero, e da heteronormatividade, até mesmo durante os anos mais “progressistas” da democracia brasileira.
Por causa do apelo à imagem sagrada dos filhos-da-nação-que-devem-ser-protegidos, a cruzada pública dos conservadores de direita contra formas de expressão queer e feministas identifica as representações do corpo nu e as performances sociais não-normativas em termos de gênero e sexualidade como símbolo do espírito anti-nacionalista que está supostamente levando o país à ruína. O paradoxo é que essa narrativa apocalíptica simultaneamente esconde e reproduz a materialidade apocalíptica da política brasileira: enquanto no dia a dia, assim como nas dinâmicas das macro-estruturas, corpos não-normativos são aqueles que encontram de maneira mais escancarada a violência do cativeiro e da morte, as narrativas de direita afirmam que o que está sendo ameaçado atualmente é o direito do sujeito branco, heterossexual, e cisgênero de viver livremente às custas dos seus “outros”. Isto é, o medo dos guerreiros da moral quanto à possibilidade do mundo deles desmanchar perante o crescimento dos projetos políticos negros, queer, e feministas está profundamente ligado à reprodução social dos efeitos brutais deflagrados pelas estruturas correntes de poder contra a desobediência de gênero e as dissidências sexuais, especialmente aquelas situadas na interseção da pobreza e da discriminação racial.
Diante de eventos como esse, pode-se dizer que a demanda emancipatória do momento é parar a marcha dessas projeções totalitaristas de ficção científica retrô, bloqueando seu caminho. O problema dessa formulação é que ela restringe o campo de batalhas ao território demarcado pelas cercas erguidas pelas cenas de sujeição dos conservadores de direita — ou, colocando de outra maneira: na tentativa de freá-los, as pessoas podem ficar presas nas ficções deles, respondendo perguntas que não podem ser respondidas senão nos termos deles e dentro do quadro de referências por eles imposto. Talvez o necessário aqui seja, em realidade, ser capaz de distinguir o que não pode ser silenciado pela perseguição hiper-moralista dos guerreiros da moral conservadora, e a continuação dos projetos inacabados de liberação negra, queer, trans, e feminista, para além do escopo totalitário.
Afinal de contas, o dilema distópico impulsionado pela intensa atividade dessas forças, pelo menos dentro do contexto brasileiro, foi antecipado até mesmo antes e por baixo da censura recente de obras de arte, exibições e seminários abertos ao público. Estava operante até mesmo antes e por baixo do que aconteceu com Judith Butler em São Paulo. Da perspectiva das pessoas as quais as expressões de gênero, desejo, sexualidade e corporalidade tem sido alvo dos códigos violentos da sociedade brasileira desde a sua formulação como democracia (e até mesmo antes e por baixo), os guerreiros distópicos dessa utopia militar sempre estiveram marchando. Nós — e aqui falo como uma bixa racializada não-binária nascida e criada no nordeste do Brasil durante o período pós-ditadura — vimos eles vindo. Ainda sim, ao invés de lutarmos sozinhas de nossas posições isoladas, escolhemos nos nutrir para não deixar que o crescimento deles nos parasse.
E nós precisamos continuar fazendo isso. Nós precisamos continuar imaginando. Precisamos continuar desbravando rotas de fuga no mapa sitiado da distopia brasileira; estudando como habitá-lo como encruzilhada e não como ponto de paragem — desviando, tumultuando, movimentando, como temos feito. Nós precisamos desarmar a guerra deles contra nossa imaginação radical para podermos sonhar com mundos que ainda não foram inventados, mesmo que toda semana os tornados reacionários do totalitarismo nos levem a defender coisas que nós já havíamos tomado por garantidas. Mesmo que eles nos forcem a defender o óbvio mil vezes, nós precisamos superar sua determinação, sonhando até mais além — acima, por trás, por dentro, contra e em volta do seu mundo de contenção. Nós precisamos incorporar, como intensidade e como matéria, o feitiço que nos permitirá falar em duas ou mais línguas ao mesmo tempo: uma que confronta a mordaça imposta pelos guerreiros da moral conservadora; e outra que nos leva para além do que eles haviam planejado para nós .
Não podemos deixar que eles nos parem agora.
(E não vamos!)
Este texto foi comissionado por e-flux conversations, e originalmente publicado em inglês no dia 18-12-2017. A tradução foi feita de forma independente e cedida pela autora ao blogue Monstruosas.