Anti-Projeto AnarcoFake, o acerto de contas de Mogli Saura com o ativismo político radical

O ano é 2011 e o evento era uma varieté na okupa anarkopunk Flor do Asfalto, localizada na região portuária da cidade do Rio de Janeiro, talvez a okupa com mais representação sexodissidente no Br$il e onde estes debates pareciam mais amadurecidos, sem negar a existência de uma apropriação desonesta para os machos anarquistas pagarem de não opressores. Enquanto Mogli Saura se pendurava em tecidos, rolava funks no lounge de um imóvel em ruínas, cercado de comida reciclada, barracos, biritas artesanais, além de uma composteira de bosta e outra de vegetais ao fundo. Este era o cenário de aquecimento de uma apresentação inesquecível do anarcofunk, a ser estragada por um macho punkeca, visitante da Disney World, que ao se sentir escanteado na balada e ouvir o “vou liberar geral, amar a quem quiser” do AnarcoBrega, iniciou uma porradaria contra duas pessoas que trocava carícias sem ele.

Este fato dá o tom sobre como ao mesmo tempo em que se tentava vivenciar práticas dissidentes e antinormativas tinhamos que lidar com comportamentos clichês de homens héteros brancos, filhos da burguesia, mas crentes que tinham rompido com seus privilégios. De lá pra cá muita coisa mudou, conflitos intensos sobre reproduções cisheterosexistas implodiram e deslegitimaram a honra radical das okupações anarkopunks no Bra$il e trouxe para o ativismo sexodissidente importantes contribuições que reverberam até hoje na construção de suas próprias perspectivas e sobretudo na ativação de uma rede que consipra, rebola e sobrevive enxergando no fracasso uma espécie de potência nutridora do caos permanente, necessário para as mudanças que almejamos aqui e agora. 

É com esta energia inebriante que propômos a Mogli, uma das figuras mais emblemáticas das movidas anarquistas, punk e queer dos anos 2000 no Brasil, uma entrevista exclusiva que revive toda esta história e publiciza uma agitação que ficou oculta durante boa parte da década passada, porém viva, contaminando vários fazeres e servindo como inspiração para outras construções. Aqui vocês podem conferir apenas uma parte da entrevista, nela a artista caga em toda pureza que a radicalidade prega pra si, deixando rastro de merda nas convicções que estas políticas colonialistas pregaram como verdade. A versão completa desta conversa estará no zine que será lançado dia 01/08 e distribuído para todo país pela Distro Dysca.

“Celebrar o lançamento do primeiro EP do Anti-Projeto Anarco Fake faz remeter as forças e movimentos que o levaram a ser como é neste exato momento. Se refere a todo um contexto queer contracultural que chegou até mim em 2008 e hoje se desdobrou na recente cena cultural, pop e mainstrean representativa.”

Mogli Saura
Mogli Saura, é protagonista do Anti-Projeto Anarco Fake e uma das figuras mais emblemáticas das movidas anarquistas, punk e queer dos anos 2000 no Brasil

Monstruosas: Conhecendo um pouco a história do projeto e atenta aos contextos políticos que ele está atrelado e se inspirou, é possível dizer que ele também é sobre uma atualização crítica a respeito das decepções, contradições e apego à uma pureza de cunho religioso presente nos ativismos políticos radicais?

Mogli Saura: Sim com certeza.
C
omo digo é o meu acerto (para não dizer fechamento) de contas com os movimentos ditos radicais que vivi. Essa atualização começa sua cartografia em 2012 (com o verdadeiro rap do fracasso) e vai até os dias de hoje se desdobrando em processos descoloniais mais aprofundados (que ainda vou gravar), para além das fronteiras da radicalidade. Vejo que muita coisa mudou desde 2012. Começamos a identificar e afrontar a norma estrutural desde dentro dos movimentos ditos radicais. Isso gerou uma série de dissidências e a partir daí foram surgindo iniciativas que deram conta de sacudir as estruturas, criar (e destruir) espaços, formar redes, fazer encontros, enfim. Esse movimento de dissidência das/nas comunidades dissidentes (crítica da crítica) e abertura para (outras) experimentações comunitárias pautadas em questões mais locais como raça, etnia e gênero, entre outras, possibilitou uma sutilização da percepção sobre a questão das radicalidades evocadas, e o que isso poderia significar. A ideia do inimigo exterior e a “escolha” das demandas a serem pautadas – sempre externas, eternas e distantes, com um tom romântico, heroico e trágico, típico da maior parte dos ativismos – começou a ser cogitada a não estar sempre em primeiro plano. Passou-se a olhar mais para a questão da importância do cuidado e do cotidiano como elemento (fundamental ao meu ver) de re-existência. Passou-se a perceber (um pouco mais) os limites aos quais estamos emaranhades, o quão ardilosa e complexa é a lógica colonial, e como “ninguém” “nunca” esteve fora de nada (leia-se “o sistema”).

Eu venho pautando essas discussões desde 2009 tendo algumas ressonâncias aqui e ali. Obvio que essas mudanças ocorreram a custo de muita desilusão e ruptura. Não foi fácil para a maioria das pessoas envolvidas nos processos. Basta olhar ao redor e pensar nos coletivos todos que acabaram de formas péssimas, com histórias de violência típicas da família tradicional, com todo tipo de treta que se possa imaginar. Toda uma série de coletivos que desde 2005 vinham se construindo com base em relações profundas de extrema confiança, que projetavam a vida em conjunto, que viviam sob ideais semelhantes. Eu fiz/faço parte disso. E embora desde sempre estivesse alertando de (modo irônico mas sério) sobre a importância de questões como a preservação do fracasso como parte do plano, também padeci em alguma medida do fracasso geral de nossos esforços. Mas é esse fracasso que me traz até aqui – por que agora cada qual tem que dar seus pulos para sobreviver no capitalismo fora das comunidades e relações que estruturaram e possibilitaram outros modos de vida anti sistema. Nessas eu acabei assumindo aquilo que negamos e criticamos o tempo todo, ao me produzir enquanto mercadoria (de modo espetacular, acima de tudo). A antiarte sempre foi meu modo de existir dentro desses movimentos, tensionando, questionando, experimentando, refazendo, propondo… Hoje ela tem sido meu modo de sobreviver no mundo do trabalho. De todo modo nunca fui pura e de princípios. Então segue o baile.

Faixada da okupa Flor do Asfalto, autointitulada “espaço anarkista auto-gerido”, o local contava com uma biblioteca, oficina de serigrafia , um herbário, atelier, oficina de bicicletas, uma pequena agrofloresta com uma média de 70 espécies (algumas em extinção), cooperativa de alimentos, cozinha comunitária e mais.

M: Essa ideia e percepção da ruptura, que articula os coletivos, indivíduos e as iniciativas radicais – arriscaria dizer, de todas as filosofias políticas – acreditarem que romperam radicalmente com a hegemonia, porque agora entende outros processos e dá valor a outras coisas, acaba por negligenciar algumas pautas, reproduzir absurdos ou romantizar visões atribuindo todo problema a uma única origem e desta forma estabelece inimigos de forma estanque e totalitária, sem malemolência e sagacidade pra entender estratégias de sobrevivência e construção política como conjunturais e momentâneas. É possível dizer que, de certa forma, o ativismo mais radical da dissidência sexual por estarem no limbo do movimento negro, indígena, sem-terra e sem teto, da esquerda, do feminismo, do transfeminismo, da ecologia, dos direitos animais e até mesmo do próprio anarquismo – que hilariamente se diz tão abrangente anti-opressões – soube desenvolver um oportunismo estratégico e vital que se beneficiou tanto da implosão dos espaços que passou quanto de um medo/deslumbre dos autointitulados desconstruides que permitiu a conexão de uma rede de apoio mútuo a partir das próprias tretas?

MS: Minha experiência é do meio anarquista mas acredito que houve/há uma sabedoria bastante singular nos seguimentos gênero e sexo dissidentes radicais, advindos de nichos diversos de lutas, que permitiu não comprometer determinados esforços (existenciais, éticos, políticos, econômicos, coletivos e pessoais) e não condenar a luta à frustração, após a desilusão nos recentes processos de ruptura das articulações políticas da nossa geração (2005-2020).

E mais que isso, como vocês bem disseram, souberam fazer da crise nutrição para o próximo movimento, liberaram/atualizaram a potência retida em esqueminhas de poder e normatização, fomentaram denúncias e afrontas, e seguiram a vida criando conexões alternativas e até mesmo impensáveis. Creio que a partir dessas tretas, rupturas e seguimentos, fomos sendo mais cauteloses e assertives em nossas amizades, parcerias e empreendimentos, fortalecendo relações antigas (e novas) que testemunharam fracassos e passaram ao próximo momento juntas; desenvolvemos outras éticas e políticas com critérios (ainda) mais interseccionais, que necessariamente dão mais amplitude, sensibilidade, empatia e ginga.

Vale dizer que vejo esse elemento de pré disponibilidade em corpas sexo dissidentes radicais sim, e que (ainda assim) continuam sendo raras as pessoas que trazem essa disposição de identificar a merda, investir na destruição, fomentar alternativas e partir para outras; para além de ressentimentos e frustrações, aprendendo a organizar, conduzir e transformar o ódio, buscando o autocuidado dxs e entre xs nossxs. Mas independente de conseguir dar conta de tudo isso (que já é grandioso) sem se estripar, tem um (outro) elemento compartilhado entre nós que é importante ressaltar: nós (já) esperamos o pior desde o começo e isso nos obriga – enquanto experimentadores radicais de si, conscientes daquilo que representamos no mundo colonial – a criar estratégias resilientes (que possam minimamente prever possíveis conflitos e fazer saídas urgentes de modo a preservar a possibilidade de dar sequencia ao experimento em vida). Nós sempre suspeitamos. Sempre houve aquelas pessoas que estavam ali até o caroço, se envolvendo e construindo junto, somando fortemente à luta, mas sempre com um pé atrás, não comprando o pacote completo, chamando atenção para as violências – e atualizações sistêmicas das mesmas – que ocorriam nos guetos da resistência e que passavam “despercebidas”. Tem um contar com o fracasso aí. Não por que somos pessimistas (só por ser) mas por saber que não podemos depositar nossa autonomia em processos que estão comprometidos com valores coloniais, de tal modo, que quando se toca a parada ela surta e te agride. Talvez com isso tenhamos cultivado a qualidade de produzir fertilidade e possível em meio as crises de modo singular, e por essas e outras estamos tendo a felicidade de poder nos articular para projetos que se guiam muito mais pela qualidade de determinados encontros (que são poucos inclusive, mas que garantem a nutrição necessária para seguir com dignidade). Enfim, “sabemos” extrair o melhor dos processos críticos, temos uma base ancestral de desenvolver inteligências para (hoje) dar a “volta por cima” do colapso geral. Justamente por que antes de nós vieram outres que deixaram um legado de resiliência, em especial as travestis racializadas.

Anti-Projeto Anarco Fake: Mogli Saura (meio), Ruda Candaces (direita) e Gil Porto Pyrata (esquerda).

M: Você diz que agora assume aquilo que negou ao se produzir enquanto mercadoria, este é um debate muito tenso e longe do consenso, afinal circula sobre assimilação capitalista, apropriação cultural, prostituição e precarização do trabalho. A Jota Mombaça, antes de ser celebrity international falava em “agir como um câncer e pensar como um vírus” e nós agregamos o “lamber como felinos, comer como porcas e morder como cobras”, pra não falar do “a boca que xinga e a mesma que chupa”. Se por um lado é impossível fugir da mercantilização pois todos os corpos, inclusive os mais bem remunerados, assumem um lado objeto, por outro dá pra entender teu Anarco Fake como uma atualização do que vem se tornando assimilável, como se estivesse abrindo cada vez mais a ferida, porque lá dentro tem um monte de bactéria hedionda que faz festa nestas fissuras. Se o “Menage a Coiote” bombar, certamente a Fátima Bernardes vai te chamar pra um papo, eae? cogita mudar o cuzinho melado pelo coração ensaboado?

MS: Hahahaha! Essa é ótima! Nossa, é bem sobre isso. Eu formulo o como seguir viva(s) nos movendo entre matilhas enquanto atravessamos o deserto. Não sei se conseguimos fazer algo mais (combativo) num contexto (de trabalho) como esse além de praguejar o sistema enquanto nos “infiltramos” nesses meios. Esse papo todo de ocupar brechas e tentar mudar de dentro acho bastante furado também, as cartas tão dadas, as pessoas e instituições que colocam a grana não tão de bobeira, capitalismo não é brincadeira, assimilação não é farra, é trabalho pesado e envolve questões muito delicadas que custam caro “as nossxs”. Ser celebrity não é o que se imagina, essa galera (dita dissidente) que tá inserida nos mercados das artes não tem garantia de um futuro tranquilo nem tá (realmente) montada no cash como muites acham. A realidade não é o que se vê no instagram. Envolve muita negociação, abdicação e até mesmo mudança de paradigma.

A Michelle Mattiuzi fala sobre a treta toda que é ser artista preta e ter que lidar com as expectativas políticas que a corpa e a obra (que não desassocia da vida) “tem que” responder aos ativismos, como se houvesse uma obrigação e responsabilidade inerente ao fato de ocupar determinados espaços. Ou seja além de lidar com a merda toda do racismo e misoginia estrutural dentro das instituições tem os movimentos cobrando. Eu tenho achado isso tudo cada vez mais uó na real. Artistas de origem periférica, racializades e sexodissidentes não tem que dar satisfação aos movimentos por serem artistas, artistas-não-brancxs-e-cis pobres são trabalhadorxs que tentam levar uma vida menos precária e com mais possibilidades. Embora tenha gente que se passa no ridículo e perca totalmente a noção do contexto em que se inseriu, fazendo discursos de luta dentro e fora de suas obras e cagando nos close, se equivocando muito… não cabe a mim fazer o apontamento, quem sou eu na fila do pão, né? Como se diz, hoje pavão amanhã espanador. O tempo ah de situar cada qual na realidade. E além de tudo isso penso que conseguir sobreviver como artista (sendo dissidente) e conseguir abrir espaços para outras fudidas adentrarem esse campo (como fez a Pêdra Costa e a Michelle por exemplo) já é uma batalha digna de reconhecimento mínimo.

Enfim… Tento não focar tanto no que pode ser para o mundo e pensar mais no básico local. Para mim tem sido muito sobre dar seguimento ao processo de nutrição pessoal e comunitário. Penso que minha produção atual está em um momento de generosidade. Estou vindo de processos de fermentação e compostagem no qual derivou essa proposta, entre outras que estão por vir. O Anti-Projeto está vindo para abrir caminhos de possibilidade e abundância em meio a desgraceira. A doença já está dada, temos de focar na cura, na prevenção e evolução. As questões e afetos que trago em meu trabalho por si só darão o sentido de seu futuro. Não sei se se trata de pensar (agora) no que fazer caso bombar, em como me portar… Acredito que seja possível prosperar sem precisar operar na lógica comparativa e valorativa do mercado, da crítica, mas para isso tem de ter uma base muito convicta de como sobreviver ao que vem pela frente… Eu não me vejo inventado nada nem promovendo tendência (falsa modéstia).

Por outro lado minha experiência aponta a necessidade de produzir uma (outra) base material que dê conta de minhas estratégias de sobrevivência, e nesse sentido, sendo bem realista, creio que vai dar conta sim de minhas demandas já que me articulo a muito tempo pelas laterais da economia dita básica (e comum) e não planejo ser rica (e famosa) segundo os critérios do capitalismo. Na real eu já sou rica meu amor, tanto que to compartilhando com vocês meus tesouros. É sobre outras referências que construo meu movimento enquanto a profissional que nunca me esforcei para ser, e que agora estou criando com toda uma base dissidente de fim de mundo. E como diz a Bruna Kury o mercado terá de nos engolir. E eu boto fé que (para além de entender) tem nicho de mercado pra tudo que é coisa nesse mundo, ainda mais agora que ele tá nas últimas, meu som vai navegar sem dúvida, rs. Uma outra treta que vejo é a de se distanciar das bases que você evoca e protagonizar e representar determinadas coisas em função das demandas dos setores de assimilação. Isso acontece e quando vemos estamos distantes do nosso terreiro, rodeades de gente que nos chupa agora mas a qualquer momento pode nos dar as costas em situações comprometedoras. Mas é isso estamos descobrindo né, cada qual no seu momento com suas prioridades. Só espero que a coisa do bando se efetue de fato e que as celebritys me chamem pra fazer coisas bafo. De todo modo prometo não virar uma otária como certas figurinhas que (aparentemente) “ficam ricas” e não olham mais na cara das fudida kkkkkkk. Se não puder gastar onda não é minha reforma (já que falar em revolução é artigo de luxo no capital cognitivo do meio das artes). Quero fazer um duo com a Linn da Quebrada cantando coração ensaboado um dia no programa da Fátima Bernardes. #ficaadica